1. CALABREsA
Tentativa má sucedida a de se enfeitar na frente do espelho.
Entre suspiros de desânimo, limpou pela quarta vez a boca de batom e a cada tentativa a constatação que a cor não foi feita p'ra ela.
Sacrifício maior, só o de se sentir confortável no salto alto e andar com liberdade naquele vestido um pouco acima dos joelhos.
Nada no pescoço, orelhas e dedos. Uma alergia psíquica a tudo que brilhasse e a mostrasse um pouco mais reluzente do que achava que era.
E mais uma vez se desfez do figurino de mulher elegante e voltou ao chuveiro. Água quente na pele áspera e na cabeça o pedido era "coragem".
Fechando o chuveiro sentou e ,imersa em sua covardia de revelação, fez o tempo passar a tal ponto de levarem com ele os pingos de água ainda quentes.
De súbito vestiu a mesma lingerie e ,por cima, o mesmo vestido de chita estampa apagada que lhe cobriam as canelas. Depois as meias brancas, o contraste com sandálias pretas, sacola de lona colorida com alças fortes de plástico resistente, óculos escuros como esconderijo - e rua.
O tempo de frio na sombra e calor no sol era o que mais lhe agradava. Agradava-lhe também o Domingo. Dia de feira livre, três quadras abaixo de sua casa.
2. QUEIJO
Nas olheiras profundas construídas por sequência de noites má dormidas se via a profunda insónia de sua alma. Ele vivia cansado apesar de pouco sair da cama. Pulmão chiando devido a grande quantidade de tabaco, não tinha forças para respirar outros ares que não fosse o ar incomodo de seu pequeno cómodo.
Já vestido com a mesma camisa branca amassada do dia anterior, o único trabalho foi colocar as calças que o aguardavam na guarda de sua cama.
Os sapatos nos pés sem meia o conduziram até a pia do banheiro onde fez um bochecho porco somente com água. Lembrou que seu cabelo havia crescido e procurou pelo boné com propaganda política de eleições passadas. Foi o suficiente para esconder a bagunça de sua cabeça.
Já esperava há seis dias por aquele domingo e, com sua sacola de lona colorida e alças deplástico resistente e óculos escuros, foi para rua. Dia de feira livre, três quadras acima de sua casa.
3. FANTA UVA SEM GELO
E entre barulhos que só aquele corredor de variedades emitia, ele e ela, cada um em sua extremidade, caminhavam pela infinidade de frutas, legumes, peixes e panelas até se encontrarem na mesma barraca.
Em meio a multidão faminta por massa oleosa com recheio, a atendente de avental bege cheirando gordura ouviu os dois uníssono:
_Calabreza com queijo e Fanta uva sem gelo.
A mulher que anotava o pedido riu, dessas risadas de coincidência banal, mas recolheu o riso ao perceber o rosto de expressões congeladas camufladas por óculos escuros. Foi cumprir com seu serviço, enquanto os dois ,disfarçadamente, tentavam perceber de onde vinha o eco de seus pedidos.
Como cena de filme em câmera lenta e som abafado, tentavam por telepatia encontrar a suas metades.
Pelo canto dos olhos se viram, espelhos que eram, e comeram e beberam num silêncio preenchido por burburinho de gente feliz num dia de domingo.
A novela teria seu primeiro capítulo se a ousadia tocasse de leve um dos dois e um deles se oferecesse a tirar seus óculos escuros ou até mesmo se um sorriso de canto de boca fosse visto.
Nada disso nada.
Boca suja de pastel dela, arroto escapado do refrigerante dele foi o sinal de que voltariam para o ninho de onde vieram.
Nas sacolas colocadas no local de origem só estava a frustração da mesmice sem histórias bonitas de contos de fadas.
Mais seis dias de angústia, cada qual no desleixo de seu coração.
Mais uma vez naquela semana martelaria o que poderia ter sido e não foi.
Fraqueza que encontra consolo em banhos quentes e bochecho porco.
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