É nóis, maluco

Olha, eu não sei como você caiu aqui. Mas já que tá, não custa um comentário p'ra deixa pegada forte na opinião do baguio. Suave!

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

É AMOR, VÓ...


É AMOR, VÓ...

1.

O vestido era de chita, os laços azuis nas costas como se fosse um presente.
E era.
Sorriso banguela aquele que dava inveja de não ter dentes.
No cabelo uma tiara deixava com excelêcia seu rosto que tinha um rosado de gente inocente.
E ela posava como santa na moldura da amarelinha. Saci de pele branca saltava pelos números e quando chegasse ao céu, estaria ofegante.
Cuidada por mãos de pais, avós, parentescos distantes, e até vizinhos que a tratavam com um zelo de medalha honrosa.
A "baixinha" não dava valor para os mimos e gostava de brincar com gente de sua idade. Achava comum a regeneração imediata ao beijar o machucado no joelho do amigo.
_"Baixinha", como...?
_É amor, vó. O amor cura tudo.
Tudo em paz no bairro do Tributo enquanto a fama não corria. Em outros tempos, era no máximo ir até a rua 9 para beijar a barriga do menino Caio para aliviar as dores que vinham toda vez que roubava coquinho do pé e os comia sem lavar.
Por mais que a boca fosse santa, milagroso mesmo eram seu olhos. Pretos de jabuticaba, sempre semicerrados, serenos. Quando abria-os era de surpresa, de susto, de gosto por ganhar mais um vestido. O azul estava em tudo: nas paredes do quarto, nos sapatos guardados minuciosamente embaixo da cama, no guarda chuva atrás da porta, e até o cachorro escolhido para ser seu companheiro teve sorte em virtude da cor de seus olhos.
_Azul dá uma coisa boa aqui dentro..._ e com as pontas de todos os dedos das mãos acariciava seu peito.
E de coração azul a baixinha que tinha a simplicidade escondida em cada gesto gostava de cantar enquanto sua mãe preparava as refeições, jogar dominó com seu pai e ouvir histórias de sua vó enquanto a velha pintava panos de prato.

2.
Foi numa tarde nublada, tão abafada que trazia uma melancolia, que Judite entrou correndo pelos corredores da casa suplicando pelo uso do telefone. Pela voz saindo aos socos, "baixinha" conheceu o desespero. Ouviu dona Judite chorar ao telefone enquanto passava o endereço de sua casa. Seu Marinho, depois de insistentes reclamações de fortes dores de cabeça havia (tudo indicava) sofrido um derrame. Se soubesse dos feitos da "baixinha",a vizinha não perderia tempo com ligação.
Dona Judite não teve forças para recolocar o telefone no gancho. Sentada na poltrona, que era o objeto mais antigo daquela casa, chorava sem querer esconder o rosto por entre as mãos. Foi a primeira vez que "baixinha" viu um adulto chorar de verdade. Viu que, naquele momento, dona Judite - a velha apelidada pelos colegas de "vacancuda" pela fama de mão de vaca e carrancuda- tinha aspecto de criança quando se machuca feio.
Espectadora atenta a todas aquelas triste sensações não se conteve e com passos tímidos, eremita entre adultos, furou o bloqueio dos seres altos, abraçou dona Judite com seu corpo inteiro e cochichou no ouvido da vizinha:
_O amor cura tudo.
A velha estancou e num soluço parou de gemer. Algo que depois ela definiu como a presença de uma asa acolhedora a fez sossegar o peito por um pequeno instante.
Descolou a pequena de seu corpo e com as duas mãos no rosto da menina a afastava para poder olhar em seus olhos. Era alívio e gratidão.


3.
E bastou a sirene da ambulância soar ainda longe para que dona Judite voltasse a convulsionar seus gritos e seus olhos quase se afogarem com tanta água.
Largou o rosto da pequena, abriu caminho com os braços gordos e tomou a frente na direção de sua casa, duas construções acima.
O portão baixo escancarado era tomado por curiosos que respeitosamente tornaram-se paredes de corredor para os homens de branco.
Baixinha acompanhava tudo de mãos dadas com sua mãe. O pai ficara responsável por investigar com curiosos faladeiros o que de fato havia ocorrido.
Ainda na entrada da cozinha, "baixinha" deparou-se com a cena mais estranha de sua vida> cena de foto antiga, sépia, emoldurada pela parede da porta: Seu Marinho, homem de meia idade estendido imóvel naquele chão de piso frio em ondas pretas e brancas. O filho mais novo ajoelhado em direção de sua cabeça olhava fixamente para o peito do pai como se de lá esperasse alguma reação. "Baixinha" não viu lágrimas nos olhos do garoto, mas compreendia a dor expressa em sua face anestesiada .
O desespero de dona Judite já não tinha esperança.No rosto dos médicos apenas a constatação de que não havia nada a ser feito. Os gritos da carrancuda senhora se transformaram em uivos e mais que três não foram suficiente para segurá-la.
"Baixinha" não conhecia tão de perto esse sentimento estranho. E de triste chorou descobrindo que compaixão dói. E enquanto toda aquela dor se movia com uma lentidão inenarrável, sua pernas se moveram sem seu comando e aproximando sua santa boca no ouvido do já condenado, sussurrou em prantos:
_Levanta, o amor cura tudo! O amor cura tudo! Levanta!
Enquanto repetia aquela frase com a virtude da convicção, seus olhos rodeavam pela casa procurando a cor azul. Seus lábios intercalavam o murmúrio frenético com os beijos pelo corpo de Seu Marinho.
_O amor cura tudo_ repetia cada vez que um beijo era findado.
Foi nos pés do morto que "baixinha" perdeu suas forças. E agora eram dois no chão.

4.
Hoje, a menina dos lábios cansados tem a fé inabalada de que acima do amor está o mistério e que seus beijos solitários talvez ecoem num mundo onde o amor tudo cura.


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2 comentários:

Renata disse...

Simplismente amei...
Suas palavras simples me inspirão..

Anônimo disse...

Belíssimo texto Zé... singelo e sensível. Belíssimo...