É nóis, maluco

Olha, eu não sei como você caiu aqui. Mas já que tá, não custa um comentário p'ra deixa pegada forte na opinião do baguio. Suave!

quarta-feira, 13 de maio de 2009

História em 11 mini capítulos

1.
Nem de perto quem visse o velho não desvendava o enrugado enigma de sua alma.


2.

Com as finas pernas cruzadas num banco de praça, a figura parece estátua. Corpo com brio de pedra ocultando a instabilidade do coração. Clássica escultura bem trajada, com camisas alvas abotoadas até o pescoço, chapéu de bom tecido caído no franzido exato da testa. Barba feita, rosto cheirando loção.

3.

Demonstrava sua simpatia no respeito de um aceno de mão à algum rosto sereno que passasse e, até mesmo no modo gentil como recusava o convite para o jogo de cartas com gente de sua idade querendo fazer amigo, notava-se que era homem de bem.

4.
Mas curioso mesmo era sua pontualidade. Todos os dias e no mesmo horário estava lá. Com um relógio de bolso de encher os olhos de qualquer um que reconhece relíquia. Raridade no preto e branco de objetos antigos.

5.
Já avistaram-no em dias de chuva - ventanias e tempestades - cumprindo o local e horário escolhido sabe-se lá qual a razão. Em dias assim, ele portava um guarda chuva preto de grande porte e, desse jeito, a estátua estava protegida.

6.

Ninguém se atrevia ou se intrometia perguntar qual era o motivo da espera ou do descanso ritualístico. E até as pombas que sempre foram um áporo naquela praça limitava-se a uma certa distância do imponente velhinho.



7.

E aconteceu de notarem a falta do velho por três dias seguidos. O primeiro a comentar a falta do estranho, foi Seu Hélio. Alfaiateiro de profissão, espalhou a notícia e percebeu que o comportamento daquele que nem sabiam o nome despertava curiosidade em muita gente.
E logo estenderam-se os comentários. Esses boatos que alimentam cidade pequena.
Até de bruxo, o enxuto senhor ganhou a fama. Como se a solidão sem motivo aparente e banhada a cerimônia tivesse que ser lógica.



8.

De tudo foi dito muito. O ponto de encontro dos faladeiros era a mercearia de Dona Lazinha. Entre idas e vindas para a compra de pães, cigarros, produtos de limpeza e até um gole de cachaça artesanal, os habitantes da pequena cidade comentavam sobre o "sumiço" do velho alheio.



9.

Dona Lazinha sempre fora uma senhora de pouca boca e ouvidos bem grandes. Evitava fofoca e não admitia que falassem de sua vida.

10.
Foi no cair da tarde, mesmo horário da visita do velho ao banco da praça, que Dona Lazinha rompeu o tagarelar dos clientes com berros e soluços de choro de gente velha:
_Meu amor... minha paixão... meu companheiro na solidão tempestuosa...
Aos socos, as frases eram proferidas e ganhava um tom a mais à cada confissão.
Ninguém ousou ajudar a velha de cabelos tigidos recentemente, unhas feitas a poucos dias e vestido novo com florido antigo a se recompor.
O olhar nos rosto de pele maquiada era p'ro assento que tantas vezes recebera o marido platônico.
Ninguém notara que a velha da mercearia tornou-se moça depois da aparição do enigmático homem.

11.
A velha agachada no chão de piso frio, cercada de produtos de várias espécies, embaixo da placa onde se lê:


VOLTE SEMPRE.

2 comentários:

MÁRCIO FERRAZZO disse...

Disseram na merecearia que o velho foi o cara que abandonou a Maria dos Pacotes no altar e, no futuro, se arrependeu.

Amanda Mantovani disse...

Fantástico esse, Zé.